June 19, 2007

Ricardo à baliza do poder




Colocar o Rei Ricardo II, figura emblemática da dramaturgia de Shakespeare, num estádio de futebol, com baliza e relva e holofotes e tudo, disfarçado (revelado?) de jogador, poderá parecer, para os mais fundamentalistas, uma heresia. Tirar-lhe a poltrona, mesmo antes de a majestade perder a coroa, substituindo-a por uma minguada cadeira de praia, uma arriscada blasfémia.

Mas Ricardo II, encenado por Nuno Cardoso para o Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa - em cena até 8 de Julho - é assim uma espécie de imenso jogo de futebol, que também podia ser de xadrez, mas onde "o mecanismo de confrontação entre as duas equipas - a que exerce o poder e aquela sobre quem ele é exercido - extrapola os limites das regras de qualquer desafio".

A ilustração desse divórcio subjaz a toda a peça. A engrenagem sobre a transição de poder de Ricardo II (João Ricardo) para o seu primo Bullingbrook, duque de Hereford (Gonçalo Amorim), que assumirá o título de Henrique IV, "é uma espécie de jogo de espelhos que se vai amplificando, uma dissecação perfeita do movimento antitético entre as duas personagens.

No início, um é rei; o outro apenas um homem. De repente, redefinem-se e os papéis invertem-se. Mas ambos continuam presos. Antes de tudo, à sua identidade". É o poder enquanto "monstro de Frakenstein" "As maiores sevícias praticam-se quando não temos consciência delas. Daí, as grandes catástrofes e a dimensão de loucura que o homem transporta", afirma Nuno Cardoso, para justificar que é justamente "a nossa constante distanciação da aceitação de coisas tão simples como a morte - Ricardo diz: "A morte é a única coisa que nos pertence" - que o "fascina" e o conduz à escolha de textos que versam invariavelmente sobre "temáticas complexas".

Sem fronteiras, sem juízos

A aposta - primeira incursão do encenador pela obra de Shakespeare - parece cínica (os actores são vestidos pela dupla Storytailors com equipamentos de futebol), mas ele garante que é uma peça "serena", sem juízos de valor. "Não estabeleço fronteiras entre o que é justo ou injusto; entre o que é bom ou mau. Esta peça, que é imensa [mais de três horas], é a demonstração da capacidade que temos de ser ambas as coisas ao mesmo tempo. E, neste caso, ambas as coisas na figura daqueles dois reis".

Ancorada num exercício que joga com o "perdurar da memória", e com a ambiguidade fornecida pela banda sonora de Sérgio Delgado, a história desenvolve-se em três momentos que correspondem a três linguagens diferentes o reinado de Ricardo; a invasão e a transição de poder; e a abdicação do Rei, período de síntese num quadro "um bocadinho pervertido" a evocar a última ceia. A causa, o efeito e as consequências.

A equipa de Nuno Cardoso não é a mesma de sempre, mas quase dos 15 actores, Cátia Pinheiro, Luís Araújo, António Júlio e Daniel Pinto pertencem a um grupo que raras vezes não integra as suas criações. O autor do estádio, Fernando Ribeiro, e o dos holofotes, José Álvaro Correia, também estão sempre lá. O núcleo duro, a linguagem cénica e a conexão entre o texto e actualidade serão a marca coerente do encenador que, desde o início, promete fazer uma comédia... que nunca chegou. Depois de dez anos a assumir a direcção artística do Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto, Nuno Cardoso deixou o lugar no início deste ano e voltará a desempenhar as funções anteriores de assessor de direcção do Teatro Nacional S. João (TNSJ). "Tendo sido o TeCA integrado na estrutura do TNSJ, que tem um director chamado Ricardo Pais, não faria sentido que eu continuasse lá", afirma numa tentativa de desmistificar a saída, garantindo não ter ficado "triste" nem "chocado". "As pessoas, em vez de polemizarem as situações, deviam prestar mais atenção ao trabalho do Ricardo e ao esforço que fez para que as obras no TeCA ficassem concluídas". Aliás, insiste, "no meio do caos do Porto, o S. João é uma ilha de sanidade. Foi lá que cresci como criador". É uma declaração de reconhecimento? "Porque não?", questiona. "Quem decide, quem tem poder e quem cria, normalmente tem um fardo, que é o da crítica. No Porto, quem carrega esse fardo é o Ricardo Pais. Sinceramente, quem faria melhor? Eu não faria. Independentemente das minhas escolhas estéticas ou do que faço ser diferente, eu não faria melhor".

Silva, Helena Teixeira da; Castanheira, Bruno. (2007). Ricardo à baliza do poder. Jornal de Notícias. Acedido em: 17 de Junho de 200706, em: http://jn.sapo.pt/2007/06/17/cultura/ricardo_a_baliza_poder.html

1 comment:

Anonymous said...

Acabo de ver uma reportagem na TV sobre a peça!!!
“Que pese a culpa nos meus ombros e que por lá fique”
Abriu-me o apetite…
Parabéns Júlio ;D

Miguel Angelo